O cálice amargo do Eng. José Sócrates

“Será que é mais nobre para a Alma sofrer os golpes e as flechas da Fortuna adversa ou pegar em armas contra um oceano de desgraças e, fazendo-lhes frente, destruí-las?”

(“Hamlet”, III, 1)

Eis a questão para o preso preventivo mais ilustre do nosso país.
O que deve José Sócrates fazer? Soltar o verbo, falar, explicar?

Fazê-lo através de quem? Com a ajuda de Mário Soares, através da publicação da troca epistolar? Através do boçal advogado que o defende? (será que o defende realmente?)

Contratar um assessor de imprensa?

A Lei, a dura lex, sed lex, proibiu José Sócrates de falar!
Na página 25 do seu livro, “A confiança no mundo”, lê-se:

“[…] para qualquer democrata, todo o silêncio é uma cobardia […]”

Corajoso ainda não sei se é, temerário e colérico tenho a certeza.
Possivelmente Sócrates pretende emular os grandes homens que cita abundantemente no seu livro, os colossos da humanidade que sentiram na pele e no espírito, qual ferro em brasa, o jugo opressor, a injustiça, o mais absoluto golpe nas suas personalidades: o esquecimento, a tentativa de anulação das suas idiossincrasias por forma a serem esquecidos e a esquecerem-se de si próprios.

Esquecimento e falta de atenção, ausência de empatia, ausência de mediatismo das dores e  provações, o aniquilamento do “eu”, mais do que derrubar a perspectiva de uma candidatura a Belém, muito mais grave do que o atentado à democracia que é, sem dúvida, não autorizar a entrada de um livro, pior que tudo isto e muito mais é não permitir a simples hipótese de defesa: bem-vindo José Sócrates Pinto de Sousa ao instituto da prisão preventiva, para o qual contribuiu decisivamente!

Estão presos no estabelecimento prisional de Évora, presentemente, 46 indivíduos, dos quais 11 estão presos preventivamente (entre eles José Sócrates).
Nunca a voz destes recluídos foi ouvida.
Minto. Muito recentemente alguns foram notícia. Foram notícia aparecendo sempre como o preso que fez isto ou aquilo e que está na prisão do José Sócrates.

“Sócrates corre diariamente e tem seguidores”. “Sócrates não jantou devido às más condições do estabelecimento prisional e os restantes reclusos seguiram o seu exemplo.”

Antes de José Sócrates “residir” em Évora a comida já era péssima, não havia água quente, já nessa altura os reclusos não podiam comprar comida porque não existem funcionários em número suficiente para comprar os produtos no “Continente”, já nessa altura os reclusos se agrediam consequência da tensão a que estão sujeitos, enfim, antes de Sócrates já existia gente presa em Portugal nas piores condições.

Mas sabe o meu Leitor(a) o que é mais irónico?
Ironia das ironias é o facto de José Sócrates ser agora vitima do normativo que aprovou e ratificou, irónico é ser agora director-geral dos serviços prisionais um “boy” dos seus (ex-secretário de estado, por sinal pouco respeitado pelo José!)

Irónica é a invocação de Jean-Marie Donegani e Marc Sadoun, as folhas 146 do seu livro:

“[…] verdadeiramente é nas situações criticas que ela se revela: ‹‹a verdade diz-se no lapso, no sonho, na loucura››[…]”.

“Ela” aqui não é nada mais nada menos que a democracia!
José Sócrates encontra-se numa situação crítica, vítima. O que legislou para o seu concidadão quando este se encontra exactamente onde ele está agora, foi, como sempre, sem conhecimento directo da realidade, logo um lapso. A ambição de ser presidente da nossa república, racionalmente avaliando, desapareceu, mas na sua mitologia pessoal (quiçá loucura) ainda é “presidenciável”: os grandes homens também passam pela prisão, é algo que os torna maiores, mais sensatos, sapientes. Sócrates vê-se no mesmo patamar olímpico que Mário Soares, Martin Luther King Jr. ou mesmo Nelson Mandela.

Ser ou não ser, eis a questão! Começámos por aí. Uma outra passagem de Hamlet surge-nos, uma passagem que deveria ser uma séria advertência para o legislador, para os políticos, para os “José Sócrates” deste mundo. Uma advertência muito mais acutilante, precisa e sábia do que qualquer sondagem à boca das urnas:

[…] O verme que vos há-de devorar é o único imperador da dieta. Engordamos todas as criaturas para que nos engordem, e alimentamos os vermes. Um rei gordo e um mendigo magro são apenas comidas variadas: dois pratos mas a mesma mesa. É como tudo acaba! Um homem pode pescar com o verme que comeu um rei e comer o peixe que comeu esse verme. Que queres dizer? Nada, a não ser mostrar-vos que um rei pode acabar nas tripas de um mendigo […]”

Shakespeare fala-nos da precariedade da fama e da fortuna, do estatuto e da real importância que temos na sociedade. Fala-nos na roda da Fortuna sempre a girar, hoje em cima amanhã em baixo.

Shakespeare alerta-nos para o pragmatismo da Morte que a todos iguala: “Io soy la muerte que a todas las criaturas que hay en el mundo destrona y arrasa” (“Danza de la muerte”, manuscrito existente na biblioteca do Escorial, Espanha).
José Sócrates está morto em vida. Dorme numa fria e suja cela que mais parece um jazigo, votado ao esquecimento porque esqueceu que podia acabar nas tripas de um mendigo, não se importou com os outros, com as suas leis para os outros e agora está entre esses mesmos “outros”!

Será estultícia ou desonestidade intelectual, citar Sócrates no seu livro John Rawls?
Na bibliografia lá está: “A theorie of Justice – revised edition”, Oxford, Oxford University Press, 1999. Será que ele leu a obra? Terá lido no tempo em que legislava ou ouviu numa qualquer “workshop” para o mestrado?

Página 170: “Em Rawls, como já notei, encontramos a defesa de uma democracia substantiva, através da formulação de uma teoria de justiça assente em dois princípios fundamentais, o princípio da igualdade de oportunidades e da diferença […]”. Na mesma página, como nota de rodapé: “As desigualdades sociais e económicas devem ser estruturadas de modo a que sejam ambas a) para maior benefício dos mais desfavorecidos, de acordo com o princípio da poupança justa, e b) associadas aos orgãos e cargos abertos a todos de acordo com uma justa igualdade de oportunidades (cfr. John Rawls, op. cit., P.266)

No topo da montanha lembrou-se Sócrates destas palavras ou só agora, no deserto, na provação, agora que sabe o que é desigualdade as recorda atribuindo-lhe o valor enquanto suspira pensando: “se eu soubesse na altura onde estaria agora governaria a Justiça de forma mais capaz, com equidade!”

Qual igualdade de oportunidades? Qual igualdade de armas no código de processo penal? Qual inserção na reclusão? Onde está a igualdade de tratamento?

Sócrates, agora que está a viver a Justiça em Portugal está lúcido como se estivesse para morrer, como o Álvaro de Campos do Pessoa!

No primeiro dia em que José, o recluso 44, contactou com a restante população recluída no estabelecimento prisional de Évora, num pequeno bloco de apontamentos, apontou uma frase que outro recluso proferiu:

– Diga lá outra vez, por favor! O conceito interessa-me – solicitou Sócrates.
Sapere Sapore
Com “S”? – questionou o José
– Sim. É uma locução latina que nos adverte para o facto de somente após termos saboreado, experimentado, após colocar as “mãos na massa”, podemos verdadeiramente conhecer algo, decidir sobre ou falar sobre algo com propriedade, no fundo ser sapiente!

Imagine o meu Leitor(a) que formidável legislador, primeiro-ministro, presidente, que líder seria o Eng. José Sócrates após esta experiência que agora vive. Que líder teria sido se antes, como agora, tivesse saboreado o cálice de vinho amargo que obteve da vindima das uvas que plantou! Irónico, não é?

(3 de Janeiro de 2015)