Liberdade daqui a: 752 dias!
No opúsculo da semana passada antecipei que neste texto deixava o relato da história de John Lilburne; vou cumprir o prometido! Nesta fase da minha vida a tudo o que é promessa dou um valor altíssimo, possivelmente consequência do trauma desenvolvido por ser o único cidadão português preso por causa de uma “promessa de vantagem patrimonial futura”.
Mas, como uma vítima do holocausto recentemente falecida disse sobre a sua verdadeiramente infernal reclusão – todos os dias o seu inferno permitia escrever um ou dois livros – aqui, o sistema, as pessoas que o compõem, ofertam-me assunto diariamente (seja eu mais agraciado pelas Musas com o talento que permita o relato); o pior é quando a “matéria”, o inesperado, o evento que não controlamos vem de fora, daqueles que à distância amamos.
Domingo, 20 de Agosto de 2017. A “ninhada” e a mãe, das 9h15 às 11h15, visitam o pai recluso.
– Pai, porque vestiste roupa hoje? – a Helena admirada quando viu que não apareci de ténis e “calções de recluso”.
Tenho saudades do João de Sousa Livre, composto, e às vezes mato saudades do que sou de facto. Foi isto que expliquei à Helena.
Contei-lhes a história do John Lilburne que vou deixar aqui. Claro que tive que apresentar uma versão adaptada por forma a segurar o público: de dois em dois minutos tinha que referir a existência de um dragão enorme que rugia mais alto que um leão ou então o Júnior desligava, ou pior, questionava-me sobre o monstro e se estava para breve a sua aparição!
Como há umas semanas atrás a Helena expôs com brilhantismo a composição da primeira dinastia dos reis portugueses, e o pai ficou muito feliz com os conhecimentos da filha, nos dois minutos que o outro não dispensava ao dragão, monopolizava a Helena os mesmos, referindo com a segurança de um José Hermano Saraiva que o Sancho I ou o Afonso II também fizeram leis, lutaram com alguém… mas nunca leu nenhuma referência a dragões!!!
A Leonor, uma “senhorita”, atentamente ouvia e sobranceava olhando os irmãos!
Duas horas, escassas, de amor, carinho, de verdadeira ressocialização e reinserção; duas horas com gente bonita e “normal”.
“Acabou a visita!” – o guarda. Beijos à mãe e à “ninhada”. O vazio. A entrada, a cela. Mudar de roupa, guardar os “beijos”, a imagem, a recordação, seguir a caminhada no deserto. Almoço: fome. Tarde: cela fechada, ler e… “Asterix e Cleópatra”, desenhos animados na televisão! Já vi este filme com as meninas (nunca o vi com o Júnior). Conheço os diálogos e as canções!
Sabem o que é “Sinestesia”? É a associação espontânea (que varia de indivíduo para indivíduo) entre sensações de natureza diferente mas que parecem estar intimamente ligadas.
No meu caso, ao ver o “Astérix e Cleópatra”, senti o cheiro da minha casa – madeira e alfazema – e experimentei uma sensação de bem-estar e calor por recordar as danças e cantorias com as “princesas”; até antecipei a alegria de fazer o mesmo com o Júnior! Sim, aqui em “Ébola”, porque não “enfio comprimidos pela goela abaixo”, sou viciado em “experiências de sinestesia auto-induzidas”: não é uma forma má de passar os dias!
À noite, sem possibilidade de falar com eles porque só possuo 5 minutos diários para o fazer, a última imagem que os meus olhos “vêem”, os “olhos da memória”, é a imagem da “ninhada”, sorrindo, e, se a Fortuna me sorrir: sonho com eles!
De manhã, segunda-feira, 8h00, os 5 minutos diários:
– O menino foi hospitalizado, ontem, cerca das 17 horas… anestesia geral… estava a brincar… engoliu uma peça da bicicleta dele…
A essa hora estava eu a rir que nem um perdido com o Astérix e o Obélix…
– … ainda está no hospital… ele tem de estar sob observação…
Sinestesia: o Júnior hospitalizado e a imagem da Coordenadora Maria Alice e do Coordenador Pedro Fonseca a prestarem declarações no meu julgamento…
– João!? Estou?!? João…
– Como é que ele está agora?
– Ainda não acordou… fez uma endoscopia… – Piiiii! O aviso sonoro: vai acabar a chamada.
– João?!?
– Até amanhã! – o João, eu.
5 minutos para falar com a Família. Três anos e quatro meses de prisão preventiva! Reinserção social? Ressocialização?
Na segunda-feira o Júnior saiu do hospital. Uma “equipa” ficou de prevenção em casa, aguardando que o menino defecasse e saísse a anilha.
Na terça-feira: “Habemus anilha”! Nesse mesmo telefonema:
– Sabes qual foi a primeira coisa que ele disse quando acordou da anestesia?
– Sim?!?
– Tenho fome!
– É compreensível, a anilha era muito pequena! – eu, tentando sorrir e fazer sorrir.
Perante tudo isto, atendendo ao exposto, as questões revelam-se neste momento ainda mais pertinentes: porquê João de Sousa? Para quê continuar a lutar quando já sabes que a derrota é certa? Para quê protelar o processo de liberdade, não participando no mesmo, justificando com o recurso para o Tribunal Constitucional, comprometendo desta forma o regresso a casa?
Algo que venho a observar naqueles com quem interajo e relato a minha decisão – camaradas reclusos, responsáveis pelo E.P., técnicos, guardas – deixa-me extremamente preocupado com o estado de anomia, a falta de valores, a anoxemia que sufoca os comportamentos ético-morais, a falta de coragem!
A incredulidade no olhar, a surpresa e a maior parte das vezes a desconfiança!
Sim, a desconfiança: ele, de certeza, deve ter “alguma na manga”!
O “fazer bem por fazer bem”, não é hipótese!
Por vezes até reduzem a minha decisão à imbecilidade: “Tem a certeza que é isso que quer fazer? Olhe que fica por cá mais tempo preso!!!”
Kurt Tucholsky, político alemão, afirmou: “Nada é mais difícil e nada exige mais carácter do que encontrarmo-nos em aberta contradição com o nosso tempo e dizermos em voz alta: Não!”
Se hesito? Não! Depois de contar a história do John Lilburne aos meus filhos, mesmo depois do Júnior andar a comer anilhas (felizmente não foi a bicicleta inteira!) e porque contei-lhes a história do “João Nascido Livre” (ficou assim conhecido na tradição inglesa), a minha decisão sai reforçada nos seus fundamentos; e se não perceberem depois do exemplo que agora Vos deixo, então Portugal é mesmo um país que falta cumprir!
Século XVII inglês, 1638. Com vinte anos, John Lilburne foi considerado culpado pelo Tribunal por introduzir no país um opúsculo contra os bispos que fora impresso nos Países Baixos.
Amarrado à parte de trás de uma carroça, dia de Verão, foi açoitado enquanto caminhava desde Fleet Street até ao Palácio de Westminster. Cerca de 500 golpes recebidos nas costas nuas, mas como usaram um chicote de três látegos: cerca de 1500 vergões nas costas!
Após o descrito: obrigado a ficar duas horas, ao sol, no pelourinho do pátio do Palácio de Westeminster. Até aqui tudo isto já foi visto, o que a seguir relato é que torna o caso único, motivo de emulação!
Apesar das feridas, começou a contar a sua história à multidão que assistia, invetivando os bispos.
Passada meia hora chegou “um gordo advogado” que lhe pediu que parasse. Recusou calar-se. Amordaçaram-no com tanta força que jorrava sangue da sua boca! Não desanimou: começou a tirar dos bolsos panfletos dissidentes que lançou para a multidão!
Esgotados os panfletos, sem outro meio de expressão: até que as duas horas do castigo chegassem ao fim, o “João Nascido Livre”, bateu com os pés no chão!!! (in “Liberdade de Expressão”, ASH, 2016)
Bolas! Que grande par de … pés tinha este João!
Compreendem agora? (não relevem o dragão: isso é só para o meu pequeno João!)
Eu, também João, não quero ser mártir, conquanto tudo isto martirize!
Tenho “Sebastião” no apelido: João Pedro Sebastião De Sousa. O meu Júnior também. Mas, asseguro-vos, não pretendo emular o Sebastião, mártir romano, nascido em Narbona, secretamente cristão, que vemos na imagem que acompanha este texto: uma bela tela de El Greco.
As únicas flechas que me podem magoar são as “anilhas” que o Júnior pode ingerir, obrigando a mãe, irmãs e avós a velar junto do seu pequeno “emunctório”.
Tudo isto martiriza, por vezes sinto estar no interior de um pilão a ser socado, esmagado, triturado, mas, como já contei à “ninhada” a história do outro “João” e lhes disse ser ele um “Grande Mestre”, só me resta manter a posição e se nada mais conseguir, ao menos, aqui, bato com os pés no chão!