“A Arbitrariedade do Tiranete”

Prisão preventiva: 2 anos e 20 dias

“O silêncio não é protesto, é cumplicidade; tal como o é a recusa de compromisso.” (in “Apocalípticos e Integrados”, Umberto Eco)

Caro(a) Leitor(a), estou exausto, exangue, esgotado, extenuado.

Colegas, recentemente chegados a “Ébola”, conhecedores do “sistema”, profetizaram: “João,  prepara-te para levar com o “martelo”! Dois anos de preventiva, eles têm de aplicar pena efectiva!”

Foi mesmo assim: simples e cru!

Abalado na minha convicção, hesitei: “Será que devo parar, calar-me? Deixar de escrever?”

“Pois, João, também não te ajuda nada estares a denunciar o “sistema”, eles vão ter que te condenar a pena efectiva! É mais que certo!”

Bolas! Borrei mesmo a pintura! Sou mesmo um pobre ingénuo!

“Vou até à cela!” – fugindo eu a mais teorias profético-reprovadoras gentilmente ofertadas, pelos meus colegas, mais experientes e experimentados.

Já no meu “jazigo”, agora agradável tugúrio, fiquei a fitar a humidade das paredes. Percorrendo os meus 9 metros de espaço, deparei com o livro do Mestre Eco e recuperei a frase que se pode “degustar” no início deste opúsculo!

Realizando um “pulo” rápido de memória, consultei as minhas fichas de leitura: “Um longo caminho para a liberdade”, Nelson Mandela; ficha IV, 4 de Maio 2014, pág. 394: “[…] Mas o corpo humano tem uma enorme capacidade para se adaptar a circunstâncias difíceis. Descobri que, desde que o espírito seja forte, somos capazes de suportar o insuportável. A força das convicções é o segredo da sobrevivência, o estômago pode estar vazio, mas o espírito está repleto […]”.

A tal hesitação que experimentei (afinal de contas eu sou humano, um ser humano preso há 2 anos e 20 dias!)

Afastei-a de imediato, e, com todo o respeito e consideração que os meus colegas merecem, decidi não aceitar o cómodo silêncio e manter vivo o compromisso com os valores que defendo, até porque é esse o segredo da minha sobrevivência e do sorriso nos lábios revelando o “riso admirável de quem sabe e gosta ter lavados e muitos dentes brancos à mostra”, como dizia o nosso Cesariny!

Assim sendo, vamos à temática de hoje.

Eu vou ter que apresentar algumas definições, do universo lexical, que vou utilizar (nomeadamente os adjectivos) porque a ignorância revestida de Poder, tem o poder de me “fechar de castigo”, independentemente dos direitos constitucionais, e, infelizmente, não possuo disponibilidade económica para as disputas judiciais sequentes.

Perante o exposto:

Tiranete: Aquele que abusa da sua autoridade ou posição, para oprimir os que dele dependem.

No dia 8 de Abril, depois de viandar entre Évora-Lisboa-Montijo-Seixal-Lisboa-Évora, ou seja, após mais três dias de audiências de Julgamento, solicitei ser recebido pelo Director do Estabelecimento Prisional de “Ébola”.

– Sr. João, o Director vai recebê-lo agora – o guarda.

Como seria expectável, toda a reunião decorreu com o mais elevado índice de urbanidade.

Objectivo da reunião: questionar o responsável máximo do Estabelecimento Prisional sobre as minhas transferências semanais.

O que me foi comunicado, no dia 10 de Janeiro de 2016, como justificação para o meu constante viandar, foi o facto de outros sete reclusos estarem em Julgamento e, consequência da escassez de efectivos e viaturas (circunstância em relação à qual sou completamente isento de responsabilidade), eu ter que ser transferido.

Como esta situação já não se verifica, uma vez que os referidos sete reclusos, todos guardas prisionais, todos alvo de investigação realizada pela minha instituição – P.J. – estiveram em prisão preventiva durante um ano e dois meses, encontrando-se todos em liberdade, apenas sujeitos a termo de identidade e residência …

– Sr. Director, diga-me, como vai ser? Serei sujeito a esta autêntica tortura, agora que já sou o único recluso em fase de Julgamento? – questionei cortesmente.

Uma pequena pausa para invocar Confúcio, por forma a enquadrarem a candura da minha pergunta e a aceitação da resposta do Sr. Director.

Dizia então Confúcio: “O maior prazer de um homem inteligente é fazer-se passar por idiota, perante o idiota que deseja fazer-se passar por inteligente!”

Resposta do Sr. Director de “Ébola”: “Sr. Sousa vou ter que falar com o Chefe (dos guardas), mas julgo que já têm coisas marcadas!”

Para que não restem dúvidas: neste quadro, a personagem do “homem inteligente” sou eu, o “idiota” é o Director!

Idiota: Diz-se de, ou pessoa estúpida, falta de inteligência, de bom senso.

Da definição, considerem, por favor, a mais suave: “falta de bom senso” (por causa do castigo, assim é mais leve a pena por ter “excedido a liberdade de expressão”).

O Sr. Director delegou num guarda a comunicação da sua decisão:

– Sr. João, esta semana vai como de costume: para cima no Domingo! – aguardando reacção.

– Obrigado! – com um sorriso.

E lá fui eu. Desnudamento com exposição da genitália aqui em “Ébola”; uma hora e vinte minutos depois, desnudamento com exposição da genitália em Lisboa.

Mas o melhor estava para vir.

Na segunda-feira, 11 de Abril de 2016, só se realizou sessão de Julgamento até às 12h25!

Eram 13h23 estava fechado dentro da cela do Estabelecimento Prisional junto da Polícia Judiciária (EPPJ) em Lisboa.

Às 16h15 já estavam junto à porta da minha cela, sete reclusos à espera para serem chamados à enfermaria! Fechado! Começou o “bullying”:

– Ó boi, estás aí e a tua mulher lá fora a […].

– Porco, chibo, filho da […] devias era morrer!

– Vou-te ficar com a “sorna” (ouro, no calão presidiário) toda e ainda te vou […] a tua mulher e a […] da tua mãe …

Tudo isto enquanto abrem a “portinhola” da porta da cela:

– Ó careca, és feio como o […].

– Tem mesmo cara de ruim […] és o diabo, filho da […].

– Devias era de levar no […] tu gostas, porco!

– Ó judite faz-me um […] devias era levar com a vassoura no […].

Isto durou até … (só um momento, vou consultar o livro onde anoto tudo) …

– Escreve, filho da […] escreve, devias era meter a caneta no […].

… desta vez foi até às 17h29, foi só uma hora e catorze minutos, foi um dos dias mais leves!

No outro dia (12 de Abril de 2016) cheguei depois da hora da medicação!

Receberão medicação de manhã como em “Ébola”? É que no dia 13 de Abril, a sessão era só da parte da tarde.

Receberam!

– Ainda aí estás careca filho da […]. Veste o fato panelei[…].

– Cabr[…] filho da […] vou-te violar as filhas, tens filhos ou filhas? Não tens, tu és panelei[…].

Foi desde as 8h30 até às 9h02!

– O cabr[…] não reage!

– Olha, tá a olhar! Tens cara de diabo, filho da […].

De dia 11 para 12 de Abril: 19 horas fechado, isolado, sem pátio, sem sol; 1 hora e 14 minutos de “bullying”!

De dia 12 para 13 de Abril: 21 horas fechado, isolado, sem pátio, sem sol; 32 minutos de “bullying”!

Na manhã de dia 13 de Abril desenhei uma experiência: medição da alteração do meu ritmo cardíaco (psico-somatismo) atendendo às variáveis:

– Aproximação da hora da medicação da população reclusa (início do “bullying”);

– Início do “bullying”;

– Aos 15 minutos, 30 minutos, ao fim de uma hora (só durou 32 minutos, o último parâmetro não foi possível obter).

– Verificar se algum insulto (dirigido a quem, o teor do insulto) alterava, substancialmente, o ritmo cardíaco.

Estou louco? Não, é a minha maneira de gerir tudo isto!

Os resultados? Esperem pelo livro!

Depois do “bullying”, o chefe dos guardas de Lisboa:

– Sr. João, não prepararam o seu almoço, peço desculpa, estão a tratar da sua refeição – profissional e diligente.

– Obrigado Sr. […], eu aguardo! – que mais poderia dizer e fazer?

Falamos durante uns breves minutos e, como o fiz com outros guardas de Lisboa e do Montijo, não consegui explicar a razão pela qual era sujeito às transferências frequentes.

Numa dessas conversas, há umas semanas, dizia-me um elemento do corpo dos guardas prisionais de Lisboa:

– Sr. João, o senhor escreve, tem jeito para a coisa, escreva a alguém para serem os colegas de Évora a “fazerem” o seu Julgamento! – expectante pela minha resposta – isto incomoda bastante o nosso serviço!

– Sr. […] vocês são incomodados? Eu vou tentar … – que mais poderia dizer e fazer.

No mesmo dia 8 de Abril de 2016 – a reunião com o Director – comuniquei ao mesmo que desde 4 de Abril de 2016, a Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR) tinha um delegado no E.P. de “Ébola”: eu!

Solicitei também, verbalmente e por escrito, a disponibilidade de espaço (do tamanho de uma folha A4) nos locais de afixação de informações no interior do E.P., para divulgação da informação que lhe prestava no momento, assim como para divulgação de informações sobre a APAR.

– Sr. João, isso é para mim uma questão inédita, tenho que ver o regulamento.

Lembram-se da frase de Confúcio: “Sr. Director, se por acaso não estiver previsto no regulamento, fica no campo do seu livre arbítrio, não será assim? A decisão é da sua responsabilidade, não?! – com candura.

– Deixe-me ver, depois direi algo! – seguro, taxativo, na sua ignorância.

Ignorante: Que não tem saber, que não é instruído em certas coisas.

Já “ignaro” é um ignorante sem instrução. Considerem que epitetei o Sr. Director de “ignorante”, ou seja, “não é instruído” no regulamento do E.P.

Será que está clara a diferença?

Despacho do Sr. Director à solicitação do recluso João de Sousa, delegado da APAR, transmitido por escrito: “Não autorizo por falta de enquadramento legal. Évora, 2016/4/8”.

Redigi uma petição, em resposta: “Solicito a V. Exa., se possível for, e porque necessita o signatário de se documentar a fim de diligenciar, no sentido de resolver esta “lacuna normativa” (o que crê-se ser também do interesse de V. Exa.) cópia da petição/atendimento manuscrita por este peticionário, datada de dia 8/4/16, relativamente ao assunto relacionado com o facto de se encontrar um delegado da APAR no E.P. de Évora – este recluso – onde consta o seu douto despacho”.

 O “douto despacho” deve o(a) Leitor(a) ler à luz da frase de Confúcio!

Despacho do Director, datado de 12 de Abril de 2016: “Indefiro o solicitado porquanto não inviabiliza a diligência que, eventualmente, pretende fazer”.

Esta devo a Vitor Ilharco, Secretário-Geral da APAR, que gentilmente ofertou-me dois livros escritos por si – “Frasco de Veneno” e “Frasco de Veneno, 2ª dose”, editora Chiado – a frase é de um anónimo: “Devido à velocidade da luz ser superior à do som algumas pessoas parecem inteligentes … até falarem.” (in “Frasco de Veneno”, pág.41, Vitor Ilharco, 2014)

O Sr. Director vale-se das leis da física, mas a certa altura tem que se expressar, dizer, escrever e aí então surge a esperta mas pouco inteligente, arbitrariedade do tiranete!

“A vida dentro da prisão caracteriza-se pela rotina: cada dia é igual ao anterior, cada semana é igual à precedente, de modo que os meses e os anos se confundem. Qualquer coisa que quebre esta monotonia irrita as autoridades, pois a rotina é a essência de uma penitenciária bem gerida” (in “Um longo caminho para a liberdade”, Nelson Mandela)

E o recluso João de Sousa, a trazer situações que nem estão previstas na lei!

O João de Sousa a obrigar o “sistema” a pensar!

Vamos é pôr este tipo a viajar, transferência com o gajo, enquanto o “pau vai e vem descansam as costas”!

No gabinete do Sr. Director encontra-se um quadro na parede, uma composição em cortiça dos serviços prisionais (S.P.), da sua representação heráldica, da sua divisa. Nas fardas dos elementos dos guardas prisionais, pode-se observar a composição heráldica presente.

Antes de ser preso, antes de ser recluso, já tinha alertado os profissionais do E.P. do Montijo (há cerca de 6 anos quando entrei pela primeira vez no E.P.), há meses tornei a fazê-lo:

– Meus senhores, a vossa divisa está incorrectamente citada. Não é labor improbus omnia vincit, é labor omnia vincit improbus!

Ao Sr. Director aqui em “Ébola”:

– Sr. Director, a divisa está mal. É labor omnia vincit improbus. Um trabalho perseverante vence tudo; são fragmentos de dois versos das “Geórgicas” de Virgílio.

– Não sei, terei de ver! – com enfadado interesse.

No dia 8 de Abril de 2016:

– Sr. Director, ainda está aí o quadro! – sorrindo.

– Sr. Sousa, fui ver ao dicionário que tenho ali, tem uma secção de … – hesitante.

– Locuções latinas, Sr. Director! – sorrindo.

– Pois, isso … e de facto, tem razão! – isto à velocidade do som!

O(a) Leitor(a) quer saber algo muito típico dos regimes serôdios, sistemas totalitários, fechados, ignorantes?

O quadro ainda lá está! Nas fardas, o símbolo e a divisa também!

E quando o meu Julgamento retomar as suas sessões a 27 de Abril de 2016, no dia 26 de Abril (um dia após a celebração do dia da Liberdade) estarei a viajar para Lisboa e, infelizmente, junto à porta da minha cela, estarão os restantes reclusos a aguardar a medicação … também!

 

 

 

 

 

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